Por Felipe Dias, Eduardo Gomes e Phelipe Frota.
Artigo publicado dia 08/04/2019 no site Consultor Jurídico.
A tributação do streaming deve partir da análise da essência da atividade desenvolvida pelo contribuinte, a fim de que a simples utilização da tecnologia não se constitua como óbice à tributação, bem como não resulte na cobrança distorciva de tributos. Em verdade, deve-se entender o funcionamento da tecnologia utilizada para, somente então, verificar a (in)existência da perfeita subsunção do fato à norma tributária. Semelhantes rupturas da economia tradicional já foram sentidas no passado, tal como ocorreu com o mercado televisivo e o advento de fitas de vídeo e DVDs. No contexto atual, entretanto, o impacto é mais evidente em razão das facilidades proporcionadas pela própria internet, que, consequentemente, influenciam fortemente o modelo de negócio implementado pelo contribuinte. Não se desconhece que a tecnologia contemporânea traz controvérsias relacionadas à sujeição passiva, responsabilidade pelo pagamento do tributo e o ente federativo competente para sua cobrança, controvérsias estas que dificultam ou até mesmo impedem a arrecadação do tributo. Por outro lado, também não se pode ignorar que justamente as novas tecnologias podem viabilizar o desenvolvimento de mecanismos que auxiliem o cumprimento dos deveres instrumentais e a correta identificação do sujeito passivo. Nessa perspectiva, não se trataria de reformular as bases constitucionais do Sistema Tributário Nacional, mas, em verdade, apenas realizar alterações no âmbito infraconstitucional e instituir mecanismos que o tornem mais eficiente frente às vicissitudes da economia digital[1]. Sem prejuízo, quaisquer alterações devem sempre levar em consideração que um sistema tributário deve balancear os ideais de (i) eficiência; (ii) geração de receitas para custeio do Estado; e (iii) simplicidade. Sob tal perspectiva, William Fletcher sustenta que a tributação do streamingnão deve incidir simplesmente sobre qualquer preço pago para acesso, mas, sim, deve levar em consideração os seguintes modelos de negócio: (i) por transação; (ii) quantidade de tempo ou dados consumidos, em conjunto com o valor pago para acesso por determinado período de tempo (por exemplo, mensalidade, semestralidade, anuidade etc.); e (iii) sistemas híbridos[2]. A necessidade de repensar as regras tributárias existentes decorre, sobretudo, da mudança da economia tradicional: do mercado de propriedade (market for ownership) para o mercado de acesso temporário (access-based consumption). O fato signo presuntivo de riqueza passa de bases fixas e estáveis para bases móveis que facilitam a alocação do lucro em jurisdições de tributação favorecida. Nesse contexto é que surgem discussões quanto ao conceito de “presença econômica relevante” para fins de alocação da receita tributável em favor do Estado onde situados os usuários do serviço, numa tentativa de equalizar a problemática de que os provedores de streaming são localizados em jurisdições diversas (normalmente de tributação favorecida) daquelas em que se localizam o mercado consumidor (responsável pela geração de receitas tributáveis). De fato, no âmbito da economia digital, a presença física — elemento indispensável para caracterização de um estabelecimento permanente à luz da atual Convenção Modelo da OCDE — não é fator determinante para a geração de receitas em determinado Estado. Contudo, trata-se de conceito que, no contexto atual, é desprovido de elementos seguros para sua caracterização no caso concreto. Sob a ótica do Sistema Tributário Nacional brasileiro, o serviço de streamingse encontra expressamente previsto na Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003, após as alterações realizadas pela Lei Complementar 157/2016. Logo, estar-se-ia diante de serviço tributável pelo ISS, na medida em que se trata de serviço de qualquer natureza previsto em lei complementar, tal como determina a norma de competência prevista no artigo 156, III, da Constituição Federal. Não se desconhece que existem argumentos para afastar a tributação pelo imposto municipal, notadamente aquele no sentido de que a regra-matriz de incidência tributária do ISS pressupõe a existência de uma obrigação de fazer. E, inexistindo obrigação de fazer à luz do clássico conceito civilista, não haveria que se falar na incidência de ISS sobre a atividade de streaming. Partindo de tal premissa, a mera inclusão da atividade de streaming na referida lista não autorizaria a incidência do ISS, na medida em que não se trataria propriamente de um serviço. Para aqueles que adotam tal entendimento, eventual tributação do streaming seria constitucionalmente possível pelo exercício da competência residual da União, prevista no artigo 154, I, da CF. Por outro lado, não se pode ignorar que, recentemente, no julgamento do RE 651.703, realizado sob a sistemática da repercussão geral, o STF firmou entendimento no sentido de que o conceito de “serviço” tributável pelo ISS está relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, obtida pelo exercício de atividades materiais ou imateriais realizadas com habitualidade e intuito de lucro, que pode estar atrelada ou não à entrega de bens. Logo, de acordo com o conceito recentemente fixado pela suprema corte, a existência de uma obrigação de fazer é irrelevante para incidência do ISS, inexistindo, portanto, óbices à incidência do tributo municipal sobre a atividade de streaming. Sem prejuízo do quanto acima exposto, também não se desconhece a existência de potenciais conflitos de incidência entre ICMS e ISS sobre a atividade de streaming. Isso porque, em que pese a previsão expressa na Lei Complementar 116/2003, o Convênio ICMS 106/2017 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) estabelece que o recolhimento do ICMS também é exigido nas importações “realizadas por meio de site ou de plataforma eletrônica que efetue a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento período, de bens e mercadorias digitais”. No entanto, ao que parece, fato é que ao menos a tributação pelo ICMS não se mostraria legítima[3], tendo em vista que, respeitados outros entendimentos[4]: (i) convênio exarado pelo Confaz não é o veículo adequado para estabelecer a regra-matriz de incidência tributária do ICMS, tampouco sujeição passiva do imposto; (ii) a LC 157/2016 incluiu o serviço de streaming expressamente na Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003 como serviço submetido à incidência do ISS; e (iii) o instrumento eleito pela CF para solução de conflitos de competência em matéria tributária é a lei complementar, o qual, in casu, é a Lei Complementar 157/2016[5]. Sob esse aspecto, pelo menos quando tratamos de streaming no estado de São Paulo, nos parece que a matéria está menos turbulenta, eis a edição de Portaria CAT 24/2018, que deixa de fora de ICMS, pelo menos neste momento, a disponibilização temporária de conteúdo. No âmbito internacional já se tem notícia de que alguns Estados, unilateralmente, instituíram turnover taxes incidentes sobre disponibilização de conteúdo (streaming), publicidade on-line, marketplacese comercialização de dados de usuários. No entanto, tal como instituídos, resultam em: (i) distorções econômicas; (ii) dupla tributação; (iii) incerteza; (iv) complexidade; (v) altos custos de compliance; e (vi) potenciais conflitos com tratados internacionais. Diante disso, ao que parece, a solução multilateral para tributação da economia digital poderia impedir os efeitos negativos da adoção de medidas unilaterais pelos Estados. Além das controvérsias jurídicas mencionadas acima, fato é que a tributação da economia digital deve ser concebida de modo a não inviabilizar seu desenvolvimento e aplicação aos negócios. Ademais, é recomendável que eventual tributação não seja instituída de modo que os custos com compliance sejam superiores aos benefícios relacionados à geração de receitas para o Estado. Independentemente da perspectiva que se analise a questão, não há dúvidas de que a incerteza da tributação é elemento extremamente negativo à promoção de negócios no âmbito da economia digital. Felipe Dias é coordenador da área tributária consultiva do Honda, Teixeira, Araujo, Rocha Advogados. |