Relativização da coisa julgada: REs 949.297/CE (Tema 881) e 955.227/BA (Tema 885)

Opinião: Régis Pallotta Trigo – Coordenador do Tributário Contencioso

Em 09/2/2023, o Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) encerrou o julgamento dos Recursos Extraordinários 949.297/CE (Tema 881) e 955.227/BA (Tema 885), nos quais se discutia a cessação automática dos efeitos da coisa julgada material que se operara sobre decisões judiciais proferidas em nome de dois contribuintes, que reconheceram a inconstitucionalidade da incidência da CSLL, decisões estas que, com o passar dos anos, passaram a colidir logicamente com a jurisprudência posteriormente firmada nos tribunais superiores sobre o mesmo tema, seja em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade das normas.

Naquela oportunidade, conclui-se que a coisa julgada material que se operou sobre uma decisão judicial individual que afastou uma determinada incidência tributária sob o exclusivo argumento da inconstitucionalidade da sua respectiva lei de regência, perderá automaticamente seus efeitos quando o STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade ou em recursos submetidos ao regime da repercussão geral, uniformizar a jurisprudência sobre o mesmo tema de forma exatamente oposta, vale dizer, no sentido da constitucionalidade da regra tributária.

Como se vê, no sopesamento entre o respeito à coisa julgada e o princípio da isonomia, prevaleceu a defesa da tese de que não seria válida a manutenção de uma decisão judicial que, mesmo transitada em julgado, liberasse um contribuinte do pagamento de um tributo, quando os seus fundamentos estivessem em desconformidade com a jurisprudência posteriormente consolidada nos tribunais superiores.

Na prática, a nova orientação do STF fez com que as duas empresas que figuravam como partes nos processos em julgamento, voltassem a sujeitar instantaneamente às futuras incidências da CSLL (de cujo pagamento elas estavam liberadas há mais de 15 anos), já que a coisa julgada que se operara sobre as decisões por elas obtidas deixou automaticamente de produzir efeitos.

Outro aspecto que estava em disputa neste julgamento 2023, dizia respeito à modulação dos efeitos da decisão no tempo. Em termos mais didáticos, os ministros também decidiram que a restauração da incidência da CSLL não se projetava apenas para frente, mas também de forma retroativa, vale dizer, desde 2007, data em que o mesmo STF, sob uma composição colegiada majoritariamente diferente da atual e no âmbito da ADI 15/DF, declarara a constitucionalidade desta cobrança.

Contra este Acórdão foram interpostos diversos embargos de declaração, cujos objetivos era o esclarecimento sobre o exato momento da interrupção dos efeitos da coisa julgada material existente sobre uma decisão judicial já transitada em julgada obtida por um determinado contribuinte em ação individual ou coletiva.

Pois bem: em 16/11/2023, o Plenário do STF atingiu a maioria de votos necessária para manter o mesmo entendimento do Acórdão embargado e determinar que a quebra da coisa julgada se configura de forma automática no momento do julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade ou de recursos submetidos ao regime de repercussão geral, que uniformizem a jurisprudência sobre um determinado tema tributário no sentido exatamente oposto ao da decisão individual.

Deste decisão, é possível se extrair alguns efeitos práticos:

  1. a decisão do STF poderá ter impacto sobre a cobrança de outros tributos pagos de forma continuada e que experimentaram semelhantes mudanças das rotas jurisprudenciais, como, por exemplo, a COFINS devida pelas sociedades prestadoras de serviços e a contribuição previdenciária incidente sobre o 1/3 constitucional de férias;

2) a nova orientação deve ser aplicada para os dois lados, vale dizer, a coisa julgada que se operou de forma contrária ao contribuinte também deverá ser relativizada se o STF invalidar uma determinada incidência tributária (ex.: contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade);

3) Não haverá cessação dos efeitos da coisa julgada material que se operou sobre as decisões judiciais relativas à exclusão do ICMS das bases de cálculo do PIS/COFINS, já que elas espelham exatamente a jurisprudência pacificada pelo STF, no âmbito do julgamento do REXT 574.706 (Tema 69), processado sob o regime de Repercussão Geral;

4) Na remota hipótese de que, no futuro, o STF altere o seu atual entendimento sobre este assunto, a nova orientação só produzirá efeitos para frente (“ex-nunc”), vale dizer, a partir da publicação da ata de julgamento que formalizar a mudança do paradigma jurisprudencial.

De certa forma, o julgamento da relativação da coisa julgada é o retrato de uma época, nem tão distante da atual, em que a legislação processual permitia a existência destas contradições entre decisões judiciais individuais e a jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o mesmo tema.

Esta anomalia do ordenamento jurídico foi superada após a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004 (batizada à época como “Reforma do Poder Judiciário), que, ao incluir o §3º no artigo 102 da Constituição Federal, posteriormente regulamentada pela Lei 11.418/2006, que inseriu os artigos 543-A e 543-B no CPC/2015, criou o requisito da repercussão geral como condição de conhecimento e processamento dos recursos extraordinários submetidos à apreciação do STF.

Como se sabe, a repercussão geral será reconhecida e o recurso extraordinário, admitido, sempre que se evidenciem questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa ou das partes.

Além da criação de um filtro de procedibilidade recursal, a EC 45/2004 introduziu uma nova regra pela qual o julgador poderá determinar o sobrestamento dos recursos que versem sobre matéria idêntica nas instâncias julgadoras, até a manifestação quanto à existência de repercussão geral e, em caso positivo, a apreciação de mérito da questão constitucional, cujo efeito será vinculante para os demais casos.

A previsão da suspensão dos feitos na instâncias inferiores até o julgamento definitivo sobre o mesmo tema no âmbito do STF, foi uma tacada de mestre do legislador e a prova do quanto o sistema processual-constitucional brasileiro estava obsoleto.

De um ponto de vista teórico e abstrato, a nova regra valorizou a função institucional daquele Tribunal como órgão criado principiologicamente para a uniformização da jurisprudência e a pacificação dos conflitos judiciais.

Já do ponto de vista eminentemente prático, ela impediu que os demais magistrados, com base nos seus respectivos e livres convencimentos, julgassem os litígios de forma precoce e no sentido contrário ao entendimento posteriormente consolidado no Tribunal Superior.

Se este mecanismo de sobrestamento cautelar não tivesse sido criado com 20 anos atraso, não estaríamos aqui tratando da relativização da coisa julgada que se operou sobre decisões judiciais que se tornaram anacrônicas pela imposição de uma jurisprudência divergente.

Vale dizer, no sistema constitucional vigente no início da década de 1990, era perfeitamente possível ocorrer o trânsito em julgado de uma decisão judicial que liberasse um determinado contribuinte do pagamento da CSSL, antes do enfrentamento deste tema pelo STF.

Hoje, duas décadas depois e possivelmente com algumas ações rescisórias pela frente, o novo ordenamento jurídico não permite que isso aconteça, já que os efeitos de uma decisão judicial isolada ficam suspensos até a solução do conflito nos Tribunais Superiores.

Em resumo e independentemente do preço que a sociedade terá que pagar pela demora na modernização da legislação processual brasileira, a conclusão macro que se retira do Acórdão do STF é que a imutabilidade da coisa julgada material, antes tratada pelos acadêmicos e pelos Tribunais como uma garantia sagrada e inegociável dos cidadãos, é um fenômeno que agora pertence ao passado.

Créditos da publicação / https://www.conjur.com.br/

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